quarta-feira, 15 de maio de 2013

Guardado na Memória

Revista do Cruzeiro

Por Gustavo Aleixo


Goleiro cruzeirense no Mundial de 1976, 
Raul Plassmann relembra histórias do duelo contra o Bayern de Munique

Um bom jornalista não narra simplesmente os fatos, também conta boas histórias. Essa máxima das redações serve muito bem para o texto a seguir. Dizem que houve uma época em que os craques dentro de campo eram verdadeiros artistas e as linhas de apaixonados cronistas nasciam fáceis dos pés e das mãos dos gênios que habitavam os gramados.

Naqueles tempos memoráveis, uma equipe azul celeste colocava Minas Gerais no topo do futebol mundial. O ano era 1976, e com o talento de Dirceu Lopes, Joãozinho, Palhinha e cia. o Cruzeiro batia o River Plate e sacramentava a inédita conquista continental em um país que vivia sob uma brutal ditadura. “O terceiro jogo da decisão contra o River na Libertadores, em Santiago, foi à noite. Na época, o Chile vivia um momento político difícil e havia um toque de recolher às 23h, então, nós deixamos o gramado do Estádio Nacional direto para o hotel e de lá não podíamos sair”, revela o goleiro do time, Raul Plassmann.

Era o começo da caminhada celeste rumo à sua primeira participação no Mundial de Clubes, que inicialmente nem chegaria a se realizar, como conta Raul: "Nas decisões passadas aconteceram várias brigas entre argentinos e europeus. Por isso, os times da Europa não queriam mais jogar o mundial". Mas logo após a vitória na Libertadores, o Cruzeiro seguiu para a Europa em excursão. Durante a viagem, o técnico Zezé Moreira fez algo que colocaria o time estrelado frente a frente com a equipe que era a base da Seleção Alemã, campeã da Copa de 1974. "O Zezé foi até a Munique e em uma reunião com os dirigentes do Bayern combinou e marcou tudo”, recorda o goleiro.

Com o jogo agendado para o dia 23 de novembro de 1976, restava aos jogadores cruzeirenses a expectativa de duelar com craques, como Gerd Müller, Rummenigge e Beckenbauer. Juntamente com a perspectiva de enfrentar um grande adversário, surgia também a previsão de mais um implacável obstáculo para o time cinco estrelas.

A neve era um fato novo para toda a delegação azul que se deslocou até a Alemanha, mas algo viria a surpreender ainda mais o ex-arqueiro cruzeirense e arrancar boas risadas.

“Fizemos um reconhecimento do Estádio Olímpico. Estava treinando e quando encostei na trave para descansar, ela saiu do lugar. O campo era marcado conforme a grama do gol estivesse gasta, então a trave era móvel”, relembra.

Foi justamente após esse treino que aconteceu o fato marcante daquele Mundial para Raul, um ato de gentileza do goleiro alemão Sepp Maier. “Eu estava parado na porta do hotel e entrou um rapaz que não tinha tipo de alemão. Esse camarada perguntou se tinha algum descendente de alemão na equipe do Cruzeiro. Aí falaram: tem um tal de Raul Plassmann aqui. Me chamaram e me disseram que o Sepp Maier tinha mandado um par de luvas para mim, dizendo que eu provavelmente nunca havia jogado com neve. Ele ainda mandou informações de como utilizá-la”. Raul confessa que ficou desconfiado com tamanho ato de solidariedade. “Perguntei para o garoto: a luva é para mim? O rapaz respondeu: é para o goleiro do Cruzeiro. Ele nem sabia quem eu era [risos]”, lembra.


Gramado do Estádio Olímpico estava coberto de neve no jogo de ida do Mundial de 76 (Revista Placar)

Na chegada ao estádio, a expectativa por um belo gramado esverdeado sucumbiu à vista da trave que se confundia com a neve. “Falei comigo mesmo: cadê o campo?’” relata Plasmann. Após o apito inicial, o que se viu foi um belo jogo entre dois timaços. O Cruzeiro, mesmo com vários jogadores em condições físicas debilitadas, mostrou qualidade frente à principal equipe do mundo na época. Superando a sensação térmica de -15ºC e o gelo em campo, que mais parecia cascalho, a Raposa foi derrotada só nos minutos finais, quando Müller acabou por marcar os dois gols da vitória alemã. “O adversário era espetacular. Na verdade, o Cruzeiro não perdeu, o Bayern é que ganhou”, ressalta Raul.


Passados 36 anos após o jogo em Munique, várias memórias se mantêm vivas na cabeça do ex-goleiro, especialmente o caso da luva, que acabou recebendo novos capítulos. “No jogo de Belo Horizonte, comprei uma lembrança para ele, uma coisa típica daqui, mas não foi possível entregar o presente, já que a delegação alemã saiu rapidamente do Mineirão.”

“Anos mais tarde, fui comentar um jogo entre Brasil e Alemanha para a Rede Globo. Estava transmitindo o jogo junto com o Galvão [Bueno]. O Roberto Cabrini era o repórter de campo. No intervalo, ele colocou o fone no Sepp Maier, que era treinador de goleiros da Alemanha, e me disse: Raul, adivinha quem está aqui e quer te presentear com uma nova luva?’ Pus o fone e eu e o Sepp nos falamos em um inglês muito ruim [risos]”, completa.

Eram tempos em que as histórias surgiam, dentro e fora do campo. ”O jogo foi tão memorável, tão grandioso e reuniu tantos grandes jogadores, que o resultado ficou irrelevante”, destaca Raul, o eterno goleiro da camisa amarela. Daquela partida ficou algo muito além do que um placar ou de uma simples notícia estampada nos jornais. Naquela noite, foi feita uma história que, em Minas Gerais, apenas o Clube Cinco Estrelas pode ter o prazer de contar.





A partida de volta, no Mineirão, terminou empatada em 0 a 0 (Cruzeiro/Arquivo)

*Matéria originalmente publicada na edição 117 (fevereiro/março) da Revista do Cruzeiro.

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